Estádio Nacional de Santiago, palco de glórias esportiva e horrores da ditadura

24 out 2023
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Há 50 anos, o Estádio Nacional de Santiago, assim como hoje, durante os Jogos Pan-Americanos 2023, fervia dia e noite. Mas não eram atletas que ocupavam o local, mas sim prisioneiros da recém-instalada ditadura de Augusto Pinochet.

O estádio funcionou como o maior centro de detenção e tortura do regime que Pinochet liderou por 17 anos após o golpe de Estado contra o socialista Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973.

Nesse mesmo dia, "o estádio começou a ser ocupado pelo Exército para receber prisioneiros, que começaram a chegar no dia 12", lembra Marcelo Acevedo, presidente da Corporação Estádio Nacional Memória Nacional.

- Narrador e detido -

Vladimiro Mimica, hoje com 78 anos, esteve muitas vezes no estádio como narrador esportivo. A ditadura o prendeu por sua militância socialista e sua proximidade com Allende e, paradoxalmente, ele foi levado para lá como prisioneiro.

"Foi um sentimento brutal. Nunca pensei ficar detido no Estádio Nacional. Pouco mais de um mês antes, pela rádio Magallanes, tinha transmitido a final da Copa Libertadores da América [em 29 de maio de 1973, entre Colo Colo e Independiente]", conta Mimica à AFP.

"Aqui transmiti conquistas e fracassos do esporte chileno, mas nunca imaginei que isto seria transformado em um campo de concentração e que eu seria parte deste cenário", lembra ele, sentado em uma das arquibancadas do estádio.

Com a mesma voz grave e o estilo que o tornou famoso como narrador, Mimica agora passa pelos lugares onde ficou detido por 20 dias: são setores sombrios e cinzentos, marcados hoje pelo silêncio.

Não há números oficiais de quantos prisioneiros passaram por ali nos quase dois meses que o estádio funcionou como prisão e centro de tortura, mas estima-se que foram entre 20 mil e 30 mil.

Entre os detidos estiveram os ex-jogadores de futebol Hugo Lepe e Mario Moreno, que fizeram parte da seleção do Chile que ficou em terceiro lugar na Copa do Mundo de 1962, disputada no país.

A ditadura assassinou 1.747 pessoas e deteve e fez desaparecer outras 1.469, entre as quais só foram encontrados os restos mortais de apenas 307, segundo informações oficiais.

- "Um povo sem memória é um povo sem futuro" -

O estádio foi sede de grandes eventos de futebol, como a final da Copa de 1962, em que o Brasil derrotou a Tchecoslováquia, e o primeiro título do Chile na Copa América, em 2015.

O local, que atualmente recebe a maioria das competições dos Jogos Pan-Americanos, foi totalmente reformado, exceto por um pedaço de arquibancada, que recorda o sofrimento dos prisioneiros.

Pela chamada 'Escotilla 8' - utilizada como cela coletiva - e uma área mantida intacta, a nadadora chilena Kristel Kobrich passou com a tocha pan-americana na cerimônia de abertura dos Jogos na última sexta-feira.

Em meio à escuridão, por minutos só era possível ver o fogo carregado por Kobrich e um letreiro que dizia "Um povo sem memória é um povo sem futuro", em homenagem a todos os que sofreram no estádio.

Os últimos prisioneiros do Estádio Nacional foram libertados ou levados a outros lugares no dia 9 de novembro de 1973.

A desocupação se deu após um pedido da Fifa, como requisito para que o local pudesse receber o jogo entre Chile e União Soviética no dia 21 de novembro de 1973, valendo uma vaga na Copa do Mundo de 1974.

Uma delegação da Fifa, liderada por seu então secretário-geral, Helmut Kaser, chegou ao Chile no dia 24 de outubro para visitar as instalações. Em sua chegada ao estádio, todos os prisioneiros foram escondidos. Entre eles estava Mimica.

"A Fifa e as autoridades do futebol chileno de 1973 foram cúmplices para mentirem ao mundo, para dizerem que tudo estava em absoluta normalidade no Estádio Nacional, que não havia presos políticos. Fomos escondidos debaixo das arquibancadas", lembra o narrador.

O jogo acabou não sendo realizado, porque a seleção soviética se negou a jogar no Chile de Pinochet, e a Fifa deu os pontos e a classificação ao time chileno.

Mas para Mimica ainda existe uma dívida. "O futebol mundial, a Fifa e o futebol chileno, em particular, devem um ato de reparação a este palco esportivo", defende o ex-prisioneiro.


FONTE: Estado de Minas


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