‘Biscoito fino’ é disco de vago conceito modernista que atenua o brilho de estrelas da MPB

29 maio 2023
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Álbum com 33 artistas em 14 faixas soa irregular e confuso, mas destaca gravações de Lenine com Anelis Assumpção, do trio Metá Metá com Bia Ferreira e Brisa Flow, de Negro Leo com Arrigo Barnabé, de Jards Macalé com Criolo e do grupo formado por Assucena, Liniker, Letrux e Josyara. Resenha de álbum

Título: Biscoito fino

Artistas: Anelis Assumpção, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Assucena, Bia Ferreira, Bianca Gismonti, Brisa Flow, Chico Chico, Criolo, Dora Morelenbaum, Duo Gisbranco, Edgar, Gal Costa, Guilherme Kastrup, Illy, Jards Macalé, Jonathan Ferr, Jorge Mautner, Josyara, Leci Brandão, Lenine, Letícia Soares, Letrux, Liniker, Lucas Nunes, Luedji Luna, Luiz Caldas, Maria Bethânia, Marina Sena, Metá Metá, Negro Leo, Rodrigo Campos e Zélia Duncan

Edição: Biscoito Fino

Cotação: ★ ★ ½

♪ Com 33 artistas em 14 faixas, o álbum coletivo Biscoito fino parte do conceito modernista da Semana de 22 para expor a diversidade da música brasileira em amplo recorte histórico que parte do século XX e vai até os dias de hoje. Com o pretexto de celebrar a Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, o disco promove encontros de cantores e instrumentistas de gerações e escolas distintas.

O titulo do álbum Biscoito fino – assim como o nome da gravadora que o lançou em edição digital na sexta-feira, 26 de maio, prometendo edição em CD para o segundo semestre – alude à frase “Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”, cunhada pelo escritor modernista Oswald de Andrade (1890 – 1954).

Na teoria, tudo parece interessante. Na prática, o disco resulta irregular e atenua o brilho de parte das estrelas do elenco por conta de intenções e produções por vezes equivocadas da direção musical de Guilherme Kastrup. Sem falar que, por ser demasiadamente abrangente, o conceito do disco ficou extremamente vago.

Como quase tudo pode ser abrigado sob o guarda-chuva modernista, com o argumento de misturar a “tradição” com a “modernidade” da música brasileira, quase nada soa realmente específico no disco gravado sob direção artística de Ana Basbaum, também curadora do projeto (em função dividida com Renato Vieira).

Traço comum em discos coletivos, as disparidades entre as faixas são gritantes. O já conhecido dueto de Gal Costa (1945 – 2022) com Marina Sena em Para Lennon e McCartney (Marcio Borges, Lô Borges e Fernando Brant, 1970) é exemplo de como a massa do biscoito fino às vezes desanda. Além de expor o abismo entre as cantoras, a gravação – que embute citação de O vento (Dorival Caymmi, 1949) – tira a força da música do Clube da Esquina pela produção mudernosa de Kastrup na faixa.

Jards Macalé e Criolo misturam samba e rap em abordagem de sucesso recente de Caetano Veloso

Daniel Ganjaman

Contudo, há acertos entre as 14 faixas. Produto da interação dos synths de Tamires Silveira com o baticum de Kastrup, a pulsação de Geleia geral (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1968) é vigorosa e é uma das mais perfeitas traduções modernistas do disco na interpretação do quarteto feminino formado por Assucena, Josyara (também no violão), Letrux e Liniker.

O standard tropicalista abre o disco com a mesma força da gravação que arremata o álbum Biscoito fino, Fico louco (1983), tema de Itamar Assumpção (1949 – 2003), um dos mentores da Vanguarda Paulista da década de 1980.

Escorados no eletrizante som dos MPCs manuseados por Bob G, Pancho Trackman e pelo produtor Kastrup, em faixa turbinada pelo sampler pilotado por Rafa Jazz, Lenine e Anelis Assumpção expõem a insanidade lúcida de Itamar em gravação à altura do compositor.

Outro ícone da lira paulistana, Arrigo Barnabé também soube mergulhar nas profundezas de Sargaço mar (1985), tema mais denso do cancioneiro de Dorival Caymmi (1914 – 2008), em gravação feita com Negro Leo, representante da vanguarda do século XXI. Há um quase desespero nos cantos dos intérpretes, como se ambos estivessem à deriva no mar da existência, em tensão potencializada pelo contraste do piano de Paulo Braga com os synths de Dino Vicente.

A tensão asfixiante de Deus lhe pague (Chico Buarque, 1971) também é traduzida pelo paredão sonoro construído pelo trio paulistano Metá Metá – Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra e synths) e Thiago França (saxofone), com a adesão de Marcelo Cabral (baixo acústico e baixo synth) – no registro incrementado com o ativismo de Bia Ferreira e Brisa Flow. Palavras de ordem como “Não tem vacina” são inseridas na letra para atualizar o tema.

O encontro de Criolo e Jards Macalé em Sem samba não dá (2021), sucesso recente de Caetano Veloso, também flui bem, alternando samba e rap em gravação coproduzida por Ana Frango Elétrico e valorizada pela guitarra de Pedro Sá.

Em contrapartida, há tantas interpretações e produções equivocadas que o disco Biscoito fino ficou desnivelado e sem força no todo.

Dora Morelenbaum e Lucas Nunes – metade da banda carioca Bala Desejo – traem a estética minimalista de João Gilberto (1931 – 2019) em gravação do autoproclamado baião Bim bom (1958) que cai na pisada do gênero nordestino, embutindo citações do bolero Ho-ba-lá-lá (1959) – outro tema autoral do papa da bossa – e de versos de Amálgama, recitados pelo autor Jorge Mautner. Nada a ver com João.

O pianista Jonathan Ferr e Leci Brandão na gravação do samba-enredo 'Aquarela brasileira'

Luan Cardoso / Divulgação

Uma direção artística e produção musical mais rigorosas talvez impedissem que o samba-enredo Aquarela brasileira (Silas Oliveira, 1963) – composto para o desfile do Império Serrano no Carnaval de 1964 – atravessasse a avenida sem a costumeira empolgação, desperdiçando os talentos da majestosa cantora Leci Brandão, do pianista Jonathan Ferr e de Rodrigo Campos (voz, guitarra, cavaco e percussão). Nem a inserção do inédito rap Um pedaço de amor, composto e cantado por Edgar com inspiração na letra, salva a evolução do samba-enredo.

Também faltou liga na junção de Fim de caso (1959) e Eu sei de cor (Danillo Davilla, Elcio di Carvalho, Lari Ferreira e Junior Pepato, 2016), sucesso de Marília Mendonça (1995 – 2001). Fim de caso é música cantada por Zélia Duncan com leveza que dilui a melancolia da canção de Dolores Duran (1930 – 1959). Já Letícia Soares canta Eu sei de cor no estilo intenso da cantora sertaneja sem link com a interpretação de Zélia, inclusive porque a música escolhida não tem a assinatura de Marília Mendonça. O interessante seria ter juntado as líricas femininas das obras autorais de Dolores e Marília.

Outro caso de faixa mal resolvida é Em nome de Deus (Sérgio Sampaio, 1998). Ainda que o piano virtuoso de Maíra Freitas se imponha no arranjo, transitando com naturalidade entre a música erudita e popular, os cantos de Maria Bethânia e Chico Chico soam sem a força vista no vídeo em que os artistas interpretam a mesma música em recente show da cantora no clube carioca Manouche.

Arnaldo Antunes e Luedji Luna se afinam mais no dueto em Sentado à beira do caminho (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969) em gravação meramente correta, deixando no ar a impressão de que os curadores poderiam ter sido mais ousados e fiéis ao modernismo tropicalista se tivessem escolhido uma canção de fato associada a Roberto Carlos – popstar rejeitado pela ala nacionalista da MPB dos anos 1960, mas abraçado por Caetano Veloso e Gal Costa – e não ao grande Erasmo Carlos (1941 – 2022).

Da mesma forma, Illy e Luiz Caldas seguem a rota de A vida do viajante (Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil, 1953) sem deixar rastros na gravação deste disco que inclui dois registros instrumentais.

A pianista Bianca Gismonti toca Água e vinho (Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, 1972), tema do pai, e reaparece no disco como integrante do Duo Gisbranco, que se une a Kastrup no medley que amalgama Coisa nº 5 (Moacir Santos, 1963), Honra ao rei (Letieres Leite, 2017) e Dança (Bachianas brasileiras nº 4) (Heitor Villa-Lobos, 1941).

Por mais que haja acertos entre as 14 faixas, o álbum Biscoito fino soa confuso e difuso. Um recorte modernista mais preciso talvez facilitasse a degustação dos biscoitos pretensamente finos pela massa que consome a música brasileira sem preocupação com conceitos.

Gal Costa e Marina Sena no estúdio, em maio de 2022, na gravação de 'Para Lennon & McCartney'

Alile Dara Onawale / Divulgação


FONTE: G1 Globo


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