Esgoto, lixo e até carcaças de carros: o que polui a água que beberemos

03 jul 2023
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Das nascentes que brotam em meio a bairros adensados, centrais e comunidades carentes de Contagem, na Grande BH, parte da água que ruma para formar a represa de Várzea das Flores, um dos mais importantes reservatórios da região metropolitana, já sai contaminada por esgoto e lixo, ao ponto de em certos trechos se tornar espessa, malcheirosa e escura, como uma nata infecta. No entorno da área de preservação e recarga hídrica da barragem, mais lixo, desmatamento ilegal, ocupações irregulares, descarte impróprio de entulho e até desova de veículos roubados (veja mapa) poluem e expõem a insegurança na orla de um manancial que abastece as torneiras de 700 mil pessoas de Belo Horizonte, Betim e Contagem, representando também fonte de lazer para a região.

A equipe do Estado de Minas percorreu e mapeou os grandes afluentes que se tornaram fontes de contaminação por esgoto para o reservatório gerido pela Copasa e integrante do Sistema Paraopeba, que mata a sede de milhares de pessoas nas maiores cidades da Grande BH. Os problemas começam já na principal fonte para sua formação: o Rio Betim nasce em Contagem e, desde a origem, recebe incontáveis cargas de esgoto clandestino, seja aberta e diretamente pelo leito de seus afluentes ou por ligações clandestinas que despejam dejetos na drenagem de águas das chuvas em avenidas sanitárias do município.
Os afluentes do Rio Betim onde o esgoto e o lixo chegam com mais evidência são o Córrego Bela Vista (Bairro Colonial), Córrego Lagoa (Bairro Colonial), Córrego Abóboras (Bairro Chácara São Geraldo), Córrego da Avenida 2 (Bairro Três Barras), Córrego Maracanã (Bairro Funcionários) e Córrego da Avenida Ibirapitanga (Bairro Fonte Grande). Outro córrego que cai diretamente na represa levando esgoto é o Córrego Água Suja, que vem do Bairro Tupã.
Uma das situações mais graves se dá no Córrego da Avenida 2, no Bairro Três Barras. O manancial é cercado por casas humildes do Bairro Funcionários, que despejam dejetos e lixo diretamente no leito. O resultado é que na parte mais baixa da comunidade, o que verte das manilhas para o leito natural tem aspecto de esgoto puro.
Ali, um líquido cinzento corre sob crostas escuras e esverdeadas, em que vermes nadam e sobre o qual moscas voam, consolidando um aspecto repulsivo que se soma ao mau cheiro. Sobre as águas flutuam garrafas de água, recipientes de detergentes, pratos descartáveis, marmitas não-retornáveis e toda espécie de lixo.
O volume é tão grande que, além de ser uma forma de contaminação para Várzea das Flores, o curso que deveria ser fonte de vida leva transtornos para a população. Quando o leito chega na entrada da galeria subterrânea construída sob uma comunidade do Bairro Três Barras, o represamento causa refluxo e inundação, levando toda a água acumulada, esgoto e lixo para dentro das casas da região.
“A gente vem sofrendo com esse pesadelo toda vez que chove. Colocamos placas nas portas e portões, mas nem isso segura a água e o esgoto que vêm das enchentes. Vira tudo uma lagoa, pegando as casas, quintais e os carros. Já reclamamos com a prefeitura e a prefeita (de Contagem, Marília Campos) esteve aqui, prometeu que ia resolver, mas até hoje, nada”, reclama a dona de casa Geralda Santana Ferreira, de 60 anos.

Móveis, ratos e baratas no leito

“Depois que sofá e móveis entram nessa água não tem mais volta, não recupera mais. No terreiro de casa a água sobe mais de um metro. O fedor de esgoto, você não imagina. Fora que temos de conviver com ratos, baratas, escorpiões, tudo quanto é tipo de bicho vem de lá. Imagina que essa água vai ainda para a Copasa tratar lá na Várzea das Flores. Um absurdo”, completa a costureira Guiomar Santana Ferreira Gomes, de 50 anos.
Há 30 anos morando na comunidade, o gari aposentado José de Souza Severino, de 55 anos, conta que a canalização do córrego foi abandonada. “É desse ponto aberto que vêm as enchentes. Sempre teve esgoto dentro do córrego, que vem de uma mina lá de cima. E vai parar tudo lá na Várzea das Flores. Tinha de dar um jeito de canalizar o esgoto, porque senão, essa mesma sujeira volta para trás para a gente tomar. Quando chove, a água não consegue passar dentro da manilha e sai para fora do córrego, entrando nas casas mais baixas”, relata.

Sujeira vem pelos leitos e pela orla

Além do esgoto que chega principalmente da Bacia do Rio Betim, o reservatório de Várzea das Flores tem outros problemas ambientais e de segurança. Segundo ambientalistas, ocupações irregulares nas áreas de preservação, desmatamento clandestino, descarte de lixo e esgoto são os principais problemas da orla.
Nos pontos onde banhistas e pescadores aproveitam seus momentos de lazer é comum ocorrer grande descarte de resíduos de alimentos e bebidas, sobretudo em Betim. Mas na cidade e em Contagem são também depenados e abandonados veículos frutos de roubos.
A Avenida Várzea das Flores, em Betim, é um dos pontos onde carcaças de carros são largadas em meio a entulho descartado de forma clandestina, lixo e restos de animais mortos. Lá, próximo à Fazenda Monjolo, a equipe de reportagem encontrou uma carcaça depenada de um veículo.
Próximo dele, havia uma montanha de encomendas postais rasgadas e violadas, com seus conteúdos removidos, provavelmente fruto de algum roubo de carga ou assalto a entregador particular. Mais abaixo, mesmo dentro da área de preservação, escavadeiras foram vistas abrindo sulcos na mata para alargamento das estradas.
“O loteamento clandestino é o maior problema das áreas de recarga da represa de Várzea das Flores. Esses loteamentos estimulam o desmatamento, geram mais lixo na área rural e a movimentação de terra para construção leva os sedimentos para a represa, contribuindo para o assoreamento. A fiscalização é ineficiente”, afirma Cristina Oliveira, integrante do grupo ambientalista SOS Várzea das Flores. “Cuidar das nascentes é cuidar da represa. A água poluída com esgoto tem um custo de tratamento maior. Quem paga é a população; a Copasa só repassa”, alerta.

SEM LIMTES 

“Este é o único manancial construído pela Copasa entregue para operação sem cercamento. Esse equívoco permite que essas situações aconteçam sem que as autoridades tomem medidas necessárias para a preservação e conservação do manancial. Para se ter uma idéia, o sistema Vargem das Flores (nome adotado pela Copasa) opera sem licença ambiental desde o início de suas atividades, há quase 50 anos. Agora é que se iniciou o licenciamento ambiental”, critica o presidente da Associação dos Protetores, Usuários e Amigos da Represa Várzea das Flores, Ronner Gontijo.

Invasões pressionam o caminho das águas

O especialista em engenharia sanitária e ambiental Paulo Soares Pinto, que já foi secretário adjunto de Gestão Urbana em Contagem, afirma que as ocupações irregulares e lançamentos de esgotos se deram pelo fato de os afluentes do Rio Betim no Bairro Três Barras estarem em área valorizada e central. Inicialmente, havia separação de esgoto e córregos.
“O Bairro Três Barras recebeu esse nome em função da convergência dos três importantes córregos contribuintes da Bacia Várzea das Flores. Os córregos, hoje urbanizados, deram origem a um sistema viário local. Foram canalizados, com a observância de um tratamento técnico e parceria com a Copasa, em 2004, com a separação entre as águas dos cursos naturais e dos efluentes”, afirma.
Procurada para se manifestar sobre a situação do manancial, a Prefeitura de Betim informou que promoveu o “recolhimento dos resíduos e entulhos descartados de maneira irregular pela própria população, e o patrolamento na via (Avenida Adutora Várzea das Flores)”. A administração afirma adotar rotineiramente ações de mobilização socioambiental em todo o município, inclusive nos arredores da represa Várzea das Flores.
“O Grupamento de Meio Ambiente (GMA) da Guarda Municipal fiscaliza a orla da Lagoa Várzea das Flores frequentemente, em ações que ocorrem principalmente nos fins de semana. Em algumas operações, inclusive, já foram encontrados carros furtados e abandonados. Todas as ocorrências são devidamente encaminhadas para a Polícia Civil”, completa.
Também questionada sobre a situação, a Prefeitura de Contagem informou, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, que “demandas de esgotamento sanitário devem ser encaminhadas para a Copasa” e que somente depois ocorrem as autuações da Vigilância Sanitária. “A prefeitura também possui um programa de limpeza e desassoreamento de córregos chamado Caminho das Águas. Os serviços estão em andamento e, para 2023, 35 córregos passarão por limpeza e recuperação dos leitos”, informou a administração municipal.
Já a Copasa informou que “o reservatório de Vargem das Flores ainda possui uma boa capacidade de depuração do grau de poluição atual. Sendo assim, o ponto de poluição ainda não influenciou os custos de tratamento”. “A companhia destaca que, apesar disso, as ações degradadoras devem ser freadas, principalmente as que afetam a preservação das áreas verdes e por consequência a área de recarga hidráulica”, acrescentou.
“Em relação ao esgoto evidenciado em alguns córregos, a Copasa informa que realiza um trabalho contínuo de mobilização social para adesão à rede existente, em conjunto também com ações de fiscalização e autuação da Vigilância Sanitária de Contagem”, prosseguiu a concessionária de saneamento. O trabalho de mobilização social também ocorre em áreas onde se evidencia o crescimento do município, segundo a Copasa, com iniciativas de conscientização sobre a importância da coleta e tratamento do esgoto.
A reportagem do EM procurou a Polícia Militar e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável para que se manifestassem sobre a situação, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

FONTE: Estado de Minas

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