Por que Montevidéu está prestes a ficar sem água

13 jul 2023
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Todas as manhãs, Sebastián Ciliurczuk abria a torneira de sua casa em Montevidéu para ferver a água do chimarrão.

Há 45 dias, esse contador de 41 anos teve que mudar esse hábito e esquentar um litro de água engarrafada para fazer a tradicional infusão.

Assim como ele, centenas de milhares de uruguaios deixaram de beber água da torneira ou usá-la para preparar suas bebidas.

A qualidade da água corrente na capital uruguaia e cidades próximas piorou ao longo do ano porque um dos reservatórios que abastecem o sul do país secou por falta de chuvas e porque a principal reserva de água doce da região - a represa Paso Severino, localizada a 80 quilômetros ao norte de Montevidéu, estava praticamente esgotada.

Nesta semana, ela estava com apenas 3% da capacidade, mas já chegou a ficar com 1,7% no início de julho.

Um país próximo a um dos rios mais largos do mundo e que acreditava que suas reservas de água eram infinitas enfrenta a pior seca desde 74 anos, e suas consequências não são vistas apenas na produção agrícola, mas também no dia a dia vida de mais da metade de seus 3,5 milhões de habitantes.

O Uruguai, que foi o primeiro país do mundo a incluir em sua Constituição que o acesso à água potável é um direito humano fundamental, agora encontra dificuldades para cumprir o que determina o documento.

Água salgada na torneira

O governo de centro-direita de Luis Lacalle Pou estava confiante de que a escassez de água seria resolvida com as chuvas, mas isso não ocorreu.

"(A ação foi tomada) pensando que era uma questão temporária e que as chuvas viriam", declarou o vice-ministro do Meio Ambiente, Gerardo Amarilla, em entrevista ao canal local 12 em meados de maio.

Questionado sobre se essa era a razão pela qual não tinha sido feita anteriormente uma represa para transferir água de outro rio para a bacia que alimenta o abastecimento da capital, o governante reconheceu que sim.

Naquela época, o governo adotou medidas transitórias - por 45 dias - para flexibilizar os requisitos de qualidade da água encanada.

"Vamos torcer para que não precisem ser prorrogados", disse Lacalle Pou na ocasião.

Setenta dias depois, a qualidade da água não melhorou.

Com pouca água doce na represa Paso Severino, o governo autorizou em 26 de abril que a Companhia Nacional de Abastecimento de Água (OSE, estatal) utilize a água do rio da Prata, que tem maior concentração de sal e cloreto, e a misture com os outros estoques.

Uma semana depois, o governo permitiu que a proporção de sódio para cloreto fosse ainda maior na água que as autoridades dizem ser "própria para consumo humano".

Com essas disposições, o Uruguai garantiu que a água não parasse de sair quando a torneira fosse aberta.

Apesar disso, a água que hoje sai da torneira em Montevidéu pode ter, segundo autorização do governo, mais que o dobro de sódio e quase o triplo de cloreto em relação aos valores máximos da definição de potabilidade do país sul-americano.

Em alguns dias, porém, esses novos tetos foram ultrapassados, segundo registros oficiais.

A água também contém maior quantidade de trialometanos, compostos químicos que se formam no líquido quando ele é tratado com cloro para desinfecção.

Diante do agravamento da crise hídrica, o governo decretou estado de emergência hídrica em 19 de junho e adotou uma série de medidas extraordinárias, como a construção de uma barragem de emergência e de uma barragem temporária, a compra de uma dessalinizadora e a instalação de uma tubulação de cerca de 13 quilômetros para levar água de outro rio até a estação de tratamento de água.

Investimentos adiados repetidamente

A causa imediata da crítica situação hídrica no sul do Uruguai é a falta de chuva.

Nos últimos três anos e meio, choveu 25% a menos que a média histórica, e, se for considerado apenas o primeiro semestre de 2023, a queda foi de 43% em relação à média.

A falta de chuvas no sul do país é ainda maior e, segundo o Instituto Uruguaio de Meteorologia, “o período atual é o mais seco” desde 1947.

Mas os especialistas consultados pela BBC Mundo consideram que a atual situação de emergência foi alcançada também pela falta de planejamento dos sucessivos governos uruguaios.

O reservatório Paso Severino foi inaugurado em outubro de 1987 e foi o último grande projeto realizado pelo Uruguai para aumentar sua capacidade de abastecimento de água.

Sua construção havia sido planejada após um estudo realizado em 1970, que recomendou várias medidas adicionais a serem adotadas, como a construção de outra barragem na cidade de Casupá, a 110 quilômetros de Montevidéu, para ter um segundo reservatório de grande vazão.

A conclusão de uma segunda obra de abastecimento de água foi adiada, governo após governo.

Cinco episódios de estiagem nas décadas de 1990 e 2000 trouxeram o tema à tona de forma intermitente, mas como essas crises não foram suficientemente severas para afetar o abastecimento de água potável, logo o investimento voltou a ser adiado.

Em 2013 e após o aparecimento de cianobactérias na água, o governo uruguaio disse que deveria ser construído um novo reservatório; um ano depois, anunciou o início do projeto Casupá.

O tempo passou, o presidente José Mujica entregou o governo ao seu sócio de esquerda Tabaré Vázquez e, quase no final do mandato, em dezembro de 2019, o então presidente apresentou os estudos preliminares para o governo Lacalle Pou iniciar a construção do reservatório.

O projeto estabeleceu um cronograma de obras com conclusão em junho de 2024 e exigiu um investimento de US$ 100 milhões (cerca de R$ 470 milhões).

Outro projeto

O governo de Lacalle Pou decidiu ir por outro caminho diante da proposta de um grupo de investimentos para construir uma estação de tratamento de água na cidade costeira de Arazatí, a oeste de Montevidéu, para tirar água do rio da Prata a um custo de cerca de US$ 280 milhões (cerca de R$1,3 bilhão), mais juros, pagáveis %u200B%u200Bem 20 anos.

Isso politizou a discussão pública sobre a solução, e atualmente os partidos de oposição defendem o projeto Casupá, enquanto os governistas apoiam a iniciativa na costa uruguaia.

Até mesmo funcionários do governo declararam que continuam a beber água da torneira, enquanto os opositores afirmam que ela pode ser usada para quase nada.

“Suponha que (...) tivéssemos decidido pela barragem de Casupá, (...) teríamos feito tudo certo e em novembro ela estaria pronta; aquela represa [hoje] não tinha água”, disse Lacalle Pou em entrevista coletiva em maio.

“O que o governo decidiu?” perguntou o presidente, e ele respondeu: “Uma fonte inesgotável de água como o projeto Arazatí, que tira água do rio da Prata”.

O chefe de Estado disse que o projeto que lhe foi deixado pelo governo anterior não está descartado.

O gerente geral da OSE afirmou algum tempo depois que os dois projetos deveriam ser executados. "Você tem que fazer Arazatí o mais rápido possível e também tem que fazer Casupá", disse ele.

"Total falta de visão"

Para o diretor do Instituto de Ecologia e Ciências Ambientais da Faculdade de Ciências da Universidade da República do Uruguai, Daniel Panario, houve uma “total falta de visão”.

"Acreditamos firmemente que nada acontece aqui", disse ele à BBC Mundo.

Panario, que também é doutor em tecnologia ambiental e gestão hídrica, entende que, para evitar essa crise, deveria ter sido feito um investimento pontual tanto na geração de uma nova fonte de água quanto no reparo de tubulações.

No Uruguai, metade da água transportada pela OSE é perdida, enquanto a média de vazamentos nos países em desenvolvimento é de 35%, segundo o Banco Mundial.

“Os diferentes governos decidiram que era mais barato tornar a água potável do que consertar os canos ”, diz ele.

Sobre a dicotomia do que deveria ser a nova fonte de recursos hídricos para o sul do país, Panario sustenta que "não poderia ser nenhum dos dois" projetos em discussão, mas que o mais adequado é o de Casupá porque supõe um custo mais baixo.

O especialista alerta ainda que no passado a distribuição de água corrente no sul do país era descentralizada para várias fontes locais, e que ao longo das décadas a unificação dependente de uma única bacia agravou a crise atual.

Diego Berger, doutor em engenharia ambiental e administração de recursos hídricos, concorda que o acesso à água potável no Uruguai era considerado seguro e que faltava planejamento.

“É preciso entender que é um bem finito e que no futuro haverá mais flutuações, mais anos de seca e mais anos de enchente”, disse à BBC Mundo.

“Nenhuma presidência vai colher frutos [de planejar e investir] em seu governo porque as políticas de água implicam trabalhar no longo prazo, e em muitos lugares não querem fazer isso porque transcende a administração”, acrescenta.

Berger é o coordenador de projetos especiais no exterior da empresa israelense de água Mekorot, contratada pela OSE antes desta crise para consultoria.

No ano passado, em entrevista à mídia local, Berger disse ser um "milagre" que o sul do Uruguai tenha "água todos os dias" porque depende de uma única fonte de abastecimento.

O especialista acredita que o mais conveniente é construir primeiro a estação de tratamento de água do rio da Prata, para garantir uma segunda fonte de água , e que o projeto Casupá seja desenvolvido em uma segunda etapa, porque depende da mesma bacia que nesses anos foi afetado.

Berger também acha que é preciso conscientizar a população sobre o consumo de água.

De acordo com um relatório do Ministério do Ambiente publicado a 7 de julho que inclui previsões meteorológicas e projeções baseadas em diferentes modelos, a normalidade na bacia que alimenta o abastecimento ao sul do país poderá ser alcançada em dezembro.

As chuvas dos últimos dias pouco ajudaram a resolver a crise hídrica do Uruguai, país que terá que buscar soluções de longo prazo para evitar o temido "dia zero" em que falta água.


FONTE: Estado de Minas


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