‘Álbum branco’ de João Gilberto faz 50 anos como referência máxima de minimalismo na discografia brasileira

24 maio 2023
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Capa do álbum 'João Gilberto', de 1973

Arte de Pedro Lobianco

♪ MEMÓRIA ♫ DISCOS DE 1973 – Nada apaga o impacto histórico dos primeiros discos de João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (10 de junho de 1931 – 6 de julho de 2019) na música do Brasil. João fez a revolução entre 1958 – ano do single de 78 rotações que apresentou a definidora gravação do samba Chega de saudade (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes) – e 1961, ano do álbum que fechou a trilogia fundamental do cantor e violonista baiano que deu foram ao som rotulado como bossa nova.

Sem desconsiderar a modernidade atemporal desses discos seminais, há quem tenha sentido o primeiro arrebatamento com a audição de álbuns posteriores de João.

Dois títulos da década de 1970 são especialmente louvados. Amoroso (1977) é justificadamente cultuado pelo equilíbrio perfeito das cordas – orquestradas com leveza pelo maestro alemão Claus Ogerman (1930 – 2016) – com o canto e o violão precisos de João.

Conhecido como o álbum branco do cantor pela cor do fundo que expõe a foto do artista ao centro da capa criada pelo artista gráfico Pedro Lobianco, o álbum João Gilberto – lançado em 1973 pela gravadora Polydor – também tem admiradores fervorosos e faz jus à devoção febril.

Em 2023, esse álbum João Gilberto faz 50 anos como referência máxima de minimalismo na discografia brasileira. O disco marcou a volta de João ao Brasil após temporadas nos Estados Unidos e no México, país onde o cantor gravou o até então último álbum da carreira, editado em 1970.

No Brasil de 1973, a bossa nova já era uma novidade distante e a maioria dos compositores do gênero já tinha perdido a preferência popular para os ícones da MPB revelados na era dos festivais da segunda metade de 1960. Se Tom Jobim (1927 – 1994) ainda pairava soberano com o voo do álbum Matita perê (1973), Vinicius de Moraes (1913 – 1980) – o grande parceirinho de Tom – vivia pico de popularidade como cantor da dupla que formara com Toquinho.

Sintomaticamente, João não incluiu sequer uma parceria de Tom & Vinicius entre as dez músicas que compõem o repertório do álbum de 1973. Mas Tom está lá, sozinho, representado pelo imenso samba Águas de março (1972), apresentado pelo compositor no ano anterior em disco encartado no jornal O Pasquim.

Águas de março abre o disco em que a voz e o violão de João se afinam somente com a percussão sutil do músico norte-americano de jazz Sonny Carr (1935 – 2011), que manuseou vassourinha em cesta de lixo. Carr é presença tão fundamental na arquitetura do álbum João Gilberto quanto a engenheira de som Wendy Carlos, responsável pela primorosa mixagem do disco. O som é ouvido com a perfeição imaginada por João.

Sem deixar de olhar para o passado como a semente que frutifica no presente, João lapida Eu quero um samba (Haroldo Barbosa e Janet Almeida, 1945) – música lançada pelo conjunto Os Namorados da Lua – e pesca pérola então recente, É preciso saber perdoar (Carlos Coquejo e Alcyvando Luz, 1967), samba apresentado em disco seis anos antes nas vozes do grupo MPB4 e revivido neste ano de 2023 por Bebel Gilberto no disco, João, que lançará em agosto em tributo ao pai.

Como a MPB já estava estabelecida em 1973, Caetano Veloso e Gilberto Gil aparecem pela primeira vez nos créditos de um disco de João. Caetano é o compositor de Avarandado (1967), canção que João depura com ternura e a sabedoria dos gênios que valorizam a essência das coisas. Gil assina Eu vim da Bahia (1965), samba marcador de território da origem de ambos os artistas.

Entranhada na alma e no pensamento de João, a Bahia é celebrada no inventivo registro instrumental do samba Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso, 1938) – cuja melodia é reconstruída por João ao violão – e na gravação de outro samba célebre da terra, Falsa baiana (Geraldo Pereira, 1944), ambos até então inéditos na discografia do inventor da bossa nova.

Um dos dois temas autorais de João, compositor bissexto, Undiú é música sem letra e com efeito de mantra pela repetição constante da palavra que batiza o tema. A faixa reside entre as melhores gravações da discografia de João por atingir esfera celestial, alta até mesmo para os inalcançáveis padrões do artista.

O outro tema autoral do álbum João Gilberto é Valsa (Como são lindos os youguis) (Bebel), composição sem letra, levada nos vocalizes e dedicada pelo cantor à filha Bebel Gilberto, que incluiu a música no já mencionado e ainda inédito tributo fonográfico que presta ao pai neste ano.

Bebel é fruto da união de João com Miúcha (1937 – 2018), cantora então debutante que participa do álbum com a devida leveza na gravação do samba que arremata o disco, Isaura (Herivelto Martins e Roberto Roberti, 1945).

João Gilberto, o disco, é a essência pura do minimalismo. Fora da imutável dimensão histórica, para quem chegou ao mundo após 1958 e por acaso ainda desconhece a arte maior de João Gilberto, ouvir em 2023 este álbum de 1973 – 50 anos após o lançamento discreto – pode gerar impacto tão grande quanto o provocado no alvorecer da bossa nova.

Em quase 50 minutos, o álbum João Gilberto oferece o suprassumo da arte do papa da bossa sem qualquer artifício além da genialidade do artista para fazer do ritmo o senhor da razão da música.

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FONTE: G1 Globo


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