Mestres da tradição e do pertencimento

13 out 2023
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A dimensão do impacto da tarefa de ensinar é múltipla e ganha novos contornos de acordo com o ambiente e o tempo em que está inserida. Para grupos que passaram por séculos de interações que os arrancaram violentamente de sua cultura ancestral, o papel de um educador vai muito além de ministrar disciplinas na sala de aula e ganha a missão de manter viva a história e a luta de um povo. Na matéria de hoje da série “Vida de Professor”, o Estado de Minas conta como as escolas da Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, Norte de Minas, são um espaço de reencontro de crianças e adolescentes com as tradições dos povos originários da região e como esse trabalho ajuda a dar visibilidade e força na luta pela retomada de direitos perdidos por quem já estava por aqui bem antes da chegada dos colonizadores.
Os xakriabás são um dos povos indígenas que há mais tempo travam contato com grupos de outras origens, como colonizadores europeus e africanos escravizados. No decorrer de quase quatro séculos, uma relação desigual de forças resultou não apenas na perda de terrenos por seus ocupantes originais, mas em processos de miscigenação forçada e aculturamento. Reverter esse processo a partir do ensino dos pequenos é o trabalho feito hoje nas escolas indígenas da Terra Xakriabá, que aliam aulas com disciplinas da grade curricular nacional com matérias específicas sobre a cultura local.
“Nosso trabalho é um pouco diferente porque a gente tem que ensinar nos dois métodos: a base nacional comum e as disciplinas especiais, que são as voltadas para a cultura xakriabá. A gente lida com a realidade dos alunos, de atender a demanda e trabalhar de acordo com a realidade da comunidade. É muito importante para a gente priorizar a nossa tradição, costumes e modo de viver, mas precisamos também trabalhar as disciplinas, porque esse conteúdo ajuda muito”, relatou à reportagem a professora Elisabeth Xakriabá.
Elisabeth é diretora da Diretora da Escola Estadual Indígena Bukimuju, baseada na Aldeia Sumaré I e uma das 11 unidades mantidas pelo estado dentro da Terra Indígena Xakriabá. O ensino nas escolas é feito exclusivamente por docentes da comunidade, o que acrescenta características locais mesmo ao ensino de disciplinas como matemática, português, geografia, história, presentes na grade curricular dos alunos de todo o país.
Essa representatividade na docência é apontada como uma conquista pela professa Edna Alves de Barros.
“Os profissionais que trabalham nas escolas são todos indígenas e indicados pelas lideranças. A gente sabe que facilita para o nosso povo trabalhar com pessoas indígenas. Elas sabem lidar melhor com seu povo, como repassar a cultura e trazê-la para dentro da escola. Esse foi um avanço dos xakriabás pelo qual lutamos durante muito tempo. A gente trabalha junto com a comunidade trazendo nossa cultura para dentro da escola. A gente ensina às crianças nossos rituais, nossas pinturas, nossos artesanatos. O contato com os indígenas mais velhos também é incentivado, a gente os leva para dentro das escolas para dar palestras, contar dos nossos antepassados, da história do nosso povo”, conta Edna, que é diretora da Escola Estadual Indígena Aldeia Riacho do Brejo.

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Das salas para a luta

Enquanto Edna Barros conversava com a reportagem do Estado de Minas, centenas de indígenas dançavam e entoavam canções alternando as vozes entre homens e mulheres. A entrevista foi feita em 20 de setembro, quando os indígenas fecharam a BR-135 em São João das Missões em manifestação pela rejeição do marco temporal, que voltaria à pauta do Supremo Tribunal naquela tarde. A tese que entende que os povos originários só têm direito às terras que já estavam ocupadas no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988 representa um retrocesso nas conquistas dos indígenas e um obstáculo incomensurável na contínua luta pela retomada das terras.
O ensino da cultura tradicional dos povos dentro da sala de aula tem impacto também na adesão das novas gerações nessa batalha que vem de séculos. “A gente está na luta com as lideranças no dia a dia. A escola está sempre junto, com os alunos e os servidores nessa luta aí. Por exemplo, hoje estamos aqui pela defesa dos nossos direitos”, disse Edna durante os protestos.
O artista e mestre Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (EBA-UFMG), Nei Leite Xakriabá, já deu aulas nas escolas da reserva e conta como o ensino das práticas artísticas ancestrais fortalece a manutenção das raízes dos povos originários. Ele destaca que o enfraquecimento dos costumes tradicionais representa um risco aos indígenas por fomentar um argumento de que não há um senso de pertencimento na comunidade.
“Tenho tentado, principalmente nessa minha prática pedagógica, fortalecer esse conhecimento ancestral e mostrar para os alunos a importância que isso tem para a nossa própria identidade. Se a gente for deixando as nossas práticas e aderindo só às práticas do colonizador, vai chegar uma época em que a gente vai ser olhado pelos outros com um olhar muito mais preconceituoso. Vão dizer que a gente não é mais indígena, que as pessoas não têm mais esse pertencimento a um povo para depois justificar que não temos mais direito ao território, por exemplo”, disse o educador e artista à reportagem.

Poder e representatividade

São João das Missões é a cidade com maior participação indígena em relação à população total do Sudeste, sendo os xakriabás quase 80% dos habitantes do local. Emancipado em 1995, o município foi ter seu primeiro prefeito de origem indígena em 2004 na figura de Zé Nunes (PT), que ocupou a chefia do Executivo Municipal por três mandatos. O atual prefeito, Jair Cavalcante (Republicanos), também é de origem indígena. Ele foi eleito para seu primeiro mandato em 2020, dois anos antes de outra missionense conseguir um resultado eleitoral positivo com a chegada de Célia Xakriabá (PSOL) a Brasília como a primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais.
As três figuras políticas proeminentes citadas anteriormente têm um ponto em comum: todas são oriundas do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei). Com disciplinas ofertadas para a capacitação de professores, o curso funciona na Faculdade de Educação da UFMG desde 2009 e já formou estudantes dos povos Xacriabá (MG), Pataxó (MG e BA), Pataxó Hã Hã Hãe (BA), Maxakali (MG), Pankararu (PE), Guarani Mbya (ES e RJ), Guarani Nhandeva (RJ).
O arquiteto, urbanista e professor da Faculdade de Educação da UFMG Roberto Luís Monte-Mór atuou em projetos na Terra Indígena Xakriabá e aponta para uma organização sociopolítica da região com influência forte da instituição de ensino na criação de gerações com maior capacidade de organização e de ascensão a cargos de decisão.
“Há diferentes níveis de organização sociopolítica entre eles. O tradicional, que são as lideranças por aldeias, pessoas hoje mais velhas, em sua maioria analfabetos, experientes, mas não letrados, que exercem influência que funciona bem internamente. A partir dos anos 2000 começaram a surgir as associações por conjuntos de aldeias. Essas associações eram lideradas por jovens professores formados na UFMG, que negociam com as lideranças locais e com fundações e órgãos governamentais.  Conseguiram recursos públicos e se relacionar com o poder”, afirma. 

Escolas indígenas

Instituições estaduais indígenas em São João das Missões
 Bukimuju –  Aldeia Brejo Mata Fome
 Xukurank – Aldeia Barreiro Preto
 Kuhinãn Xakriabá –Aldeia Rancharia
 Bukinuk – Aldeia Sumaré I
 Uikitu Kuhinã – Aldeia Riacho dos Buritis
 Mambuka – Aldeia Morro Falhado
 Oaytomorim –Aldeia Prata
 Riacho do Brejo  – Aldeia Riacho do Brejo
 Itapicuru – Aldeia Itapicuru
 Educação Infantil e Ensino Fundamental  –Aldeia Caatinguinha
 Educação Infantil e Ensino Fundamental/Anos Iniciais e Finais e Ensino Médio – Aldeia Sumaré II

FONTE: Estado de Minas

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